segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sobre partidas, chegadas e trajetos

por Murilo Mosqueta

    foto: Murilo Mosqueta



Sobre partidas, chegadas e trajetos
 “aquilo que estamos nos tornando é muitas vezes o aspecto mais importante daquilo que somos.”
                                                     Murilo Moscheta




Em toda parte já posso ver a movimentação típica de fim de ano. As festas convocam-me para seus rituais religiosos, comerciais e reflexivos. Embarco naquele que me convém.
A idéia de fim que impregna a segunda quinzena de dezembro me convida a reflexões que vagueiam em sentidos opostos e complementares. Assim lanço-me em retrospectivas e projetos.
No sentido retrospectivo, visito minhas memórias e coleciono os emblemas daquilo que para mim foi especial. Como um filme que revejo, o passado parece pronto, editado e bem-acabado. Assisto-me como uma personagem definida atravessando um enredo já conhecido. Percebo então o risco: da linguagem que uso para falar de minhas experiências parece emergir uma descrição de quem eu sou que não contempla quem eu estou me tornando. E para mim isto é um risco, pois identifico a desesperança que impera quando minhas descrições de mim e da vida não incluem os vazios e incompletudes que constantemente me colocam em movimento. Falar do passado pode, muitas vezes, favorecer uma narrativa na qual me relaciono com as pessoas, com minhas escolhas, com a vida, como se fossem, e esqueço de incluir a percepção daquilo que estão se tornando. E aquilo que estamos nos tornando é muitas vezes o aspecto mais importante daquilo que somos.
Mas o fim de ano é também um convite para olhar para o futuro. No embalo das listas de presentes, faço também um lista de conquistas, aquisições, projetos e metas que gostaria de ver realizados no próximo ano. E novamente um risco se insinua aqui. Desta vez o risco refere-se a possibilidade de confundir o processo de tornar-se com a aquisição de um marco identitário. Por exemplo, tornar-se médico, enfermeiro ou psicólogo é um processo que se estende para muito além da mera aquisição do diploma que marca o encerramento de um curso superior. De mesma forma, ter um relacionamento (com todo o peso que esta palavra possa ter) é um empreendimento que não se confunde com um namoro ou casamento. Ser pai não é o mesmo que ter um filho. A diferença está no modo como nos engajamos nessas tarefas: de um lado um investimento incessante na criação do que queremos ser, de outro o consumo apressado de “produtos” que nos acenam com a possibilidade de ser sem se tornar. Falo da distinção entre produto e processo, tão cara as formulações marxistas sobre a alienação. No sentido da construção da identidade, alienar-se é relacionar-se com as próprias escolhas (e desejos) como pontos fixos.
Escolhas são pontos de partida e não pontos de chegada. Escolhemos de onde começamos (e estamos sempre no começo, até mesmo quando chegamos ao fim) mas não podemos prever onde chegaremos. Decidimos para onde vamos e chegamos, geralmente, em algum outro lugar.
O perigo de nos relacionarmos com as escolhas como se fossem pontos de chegada, e não de partida, é deixarmos de nos ver como autores da história que estamos construindo e perdermos a perspectiva criativa. Na “lógica da chegada” as escolhas ganham um caráter definitivo. Viram produtos na prateleira da existência. O tempo e o percurso do eu-atual até o eu-desejado fica encurtado e ignorado. Quando o destino passa a valer mais que o trajeto a viagem perde a graça - ela é apenas tempo e espaço que nos separa de nosso desejo. Todo horizonte fica reduzido a este grão de sonho.
Resistir a uma apreciação do passado ou projeção de futuro alienante significa para mim manter viva a percepção e a responsabilidade por quem estou me tornando. Neste sentido esta resistência ganha a dimensão criativa de sempre reinventar aquilo que entendo como minha identidade. Além disso, sou desafiado a considerar o modo como invisto no processo de construção daquilo que quero ser, me lembrando sempre que embora formado há 10 anos, ainda não deixei de construir o psicólogo que quero ser; embora vivendo em um relacionamento há 7 anos, ainda preciso me esforçar em tornar-me o companheiro que gostaria de ser e embora nascido há 33 anos, guardo em mim possibilidades de nascer como outro, reinventado, sempre...

Murilo Moscheta é psicoterapeuta e professor de psicologia em Maringá. É mestre e doutor pela Univerdade de São Paulo de Ribeirão Preto. Também trabalha como designer gráfico e está atualmente investindo em um projeto de adaptação e montagem teatral, Escreve para o portal de notícias Folha de Maringá. Isto é para ele, seu ponto de partida.


Este texto é inspirado no texto “Psicólogo ou artista? Um convite para a reflexão sobre os desafios de criar a identidade profissional.” Para conhecer este e outros textos de Murilo Moscheta acesse o link: www.folhademaringa.com.br/murilomoscheta



2 comentários:

  1. Que aconchego gostoso se esparramar nessas linhas...sentir, idealizar, entristecer e sorrir ao mesmo tempo...singular! Como sempre foi esse encontro com você Murilo: exclusivo! Parabéns e obrigada por compartilhar todo seu saber! Aproveito para deixar um abraço apertado em você e no grupo que guardo com tanto carinho e orgulho: Ana, Teresa e Carlos. A nostalgia é forte, mas seu valor é maior! Amo vcs! Déia

    ResponderExcluir
  2. Deia, obrigado pelo carinho. Também tenho saudades deste grupo incrível. Bj

    ResponderExcluir