sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Sextou no ESPAÇO PSI (04/11/22)


O “Conto da Ilha Desconhecida”, de Saramago, é um livro curto, mas imenso em reverberações. E se inicia assim: quando um homem vai à Porta do rei rei-vindicar um barco, é deixado à espera. O rei preferia outra Porta, não a dos pedidos a conceder, mas a dos favores a si. Tanto que a das petições exigia muita burocracia. Quem sabe o pedinte assim desistisse. Mas que o homem só diria a que veio ao rei! E a mulher incumbida não só de abrir a Porta, mas também da limpeza, que o mandasse trazer. 

Mas se pretendia seguir em busca da ilha desconhecida, não haveria, pois, uma contradição: se desconhecida, como saberia o homem dela? Já não estariam todas mapeadas? Ao que o homem rebate não ser possível serem todas sabidas. E de que serviriam barcos ao rei se, em sendo dele, não navegariam? “Ter deve ser a pior maneira de gostar.”, pois que não se usufruiria da posse. A resposta do rei à reclamação do homem desperta a vocação da mulher, que, então, sai do palácio por outra Porta, a das Decisões. E que Porta atravessará você, leitor, dependerá da sua experiência de leitura com o texto. 

Eis a minha. Sensível e poético, a-barca a navegação em mar tumultuoso como metáfora. Com seus perigos, inclusive de naufrágio, em turbulentas águas - próprias! Partindo de um encontro, que se pode aproximar do que acontece em uma análise, entre duas pessoas, perturba-dor. Com os personagens podendo figurar como estados mentais. Uma narrativa que diz de dentro e culmina em sonho. E na possibilidade de se sonhar a experiência. Que fala de desejo. Não sendo a ilha somente um lugar, um cais no porto onde atracar. Coincidindo a chegada com o ponto de partida.  Pois “é necessário sair da ilha para ver a ilha”. Sair de si para saber quem se é. Do mapeado, lançar-se à arte da marinharia, enfrentar águas turbulentas, navegar em mar aberto, abrir “caminho sobre as ondas”. Que envolve transformação - do barco na própria ilha. Uma expedição de si que passa pelo outro. Tal qual a Ilha Desconhecida que se lança ao mar, em busca de si mesma.

Ana Flávia de O. Santos é psicóloga (CRP 06/90086) clínica e judiciária. Leitora assídua, aspirante à escritora e amante da leitura da vida a partir da Psicanálise.

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